sábado, 24 de dezembro de 2016

MESTRE BIMBA E O XAVANTE - BY MESTRE ACORDEON


Quase no final de um daquele dia, um jovem desconhecido entrou desafiante no terreiro repleto. Com arrogância, a musculosa estatura do Xavante cor de cobre olhou a todos de cima de sua altura. Imediatamente tornou-se evidente que ele não estava só. Dependurado num colar de contas coloridas, ele carregava junto ao coração um saquinho recheado de coisas mágicas, mandinga forte preparada pela sua mãe-de-santo. Uma aura poderosa envolvia sua imagem de guerreiro acostumado ao combate, um vencedor. Realmente não estava só.
Mestre Bimba parou o jogo e lhe indagou mudo com um olhar cortante:
-Quem é você para interromper a minha festa?
O estranho não lhe respondeu de pronto. Foi entrando até parar no meio da roda. “Vim do Recôncavo prá jogar com você, seu Manuel!”
O espanto amordaçou o pessoal e um silêncio de chumbo fundiu-se no ar. Ninguém jamais se dirigira ao Mestre daquela maneira. Em poucos segundos, acordando do estupor causado pela surpresa, vários alunos pularam à frente em defesa do velho mestre. Bimba acalmou a todos e convidou o visitante a se agachar no pé do berimbau, como manda o catecismo das tradições e o ritual de se iniciar o jogo.
Então, puxou a ladainha com voz forte e emoção.
Ieeeeeeh!
Ieh tava em casa!
Ieh tava em casa,
Sem pensá nem maginá!
Quando ouvi batê na porta,
Levantei prá espiá.

Era uma cabra muito ousado
Me chamando prá jogá.
Hoje o dia é de festa, veja só…
Veio aqui para brigá.
Num tem nada, meu colega,
Tá na hora, vamos lá,
Um mundo dá muitas voltas
Essa volta vamos dá, camaradinho…
Eh, viva meu Deus…
Viva a capoeira
É regioná…
Gigante mandou um São Bento Grande bem marcado no seu gunga de lei, e o coro rolou:
-Qué dá no meu mestre, no mestre você não dá!
Uma comichão nervosa instigou a alma dos presentes, excitação no ar. No pé do berimbau estavam prontos. Era hora de lutar. De um lado, o jovem atlético tinindo para desfechar ataques mortais. Do outro, o velho mestre com as juntas enrijecidas pela idade e as pernas varicosas geralmente pesadas e lentas. Porém, havia algo de especial nos seus olhos, na sua postura. Uma tranquilidade alerta.
Eles se cumprimentaram, tocaram o chão em frente e invocaram as bençãos dos orixás. O clima amistoso de minutos atrás cedera lugar a uma nuvem carregada que antecipava tempestade. A Brincadeira de Angola estava a ponto de se tornar numa luta verdadeira no ritmo forte de São Bento Grande de Regional. Somente aqueles que já experimentaram um jogo na maldade verdadeira podem imaginar o arrepio de fogo que escorre espinhaço abaixo preparando o corpo na expectância do combate prá valer.
Naquele momento o desafiante preparou um “au” elástico e ligeiro em direção ao centro da roda. O velho Mestre pôs as mãos no chão e deu um salto mal feito e feio, um “au” todo encurungunjado como ele costumava dizer. Rápido que nem um corisco, Bimba terminou o movimento antes do outro capoeirista completar o seu, esquecendo o pé flutuando no espaço como enorme marreta pronta para esbagaçar o mundo.
Carregado pelo impulso do seu próprio movimento, o jovem desafiante colidiu contra a bigorna à prumo que fora coloca displicentemente num local escolhido com precisão. O impacto foi tremendo e o homem se projetou no meio dos expectadores surpresos, desistindo do jogo antes mesmo dele começar. Dolorido, a boca sangrando a cuspir pedaços de dentes, exclamou esputefato: “Que é isso, mestre...que é isso?”
O velho mestre sem lhe dar muita atenção respondeu em cima da bucha:
- Isso é pé, meu filho!
Continuando a partir de onde havia parado antes, Bimba deu um “iê,”
assinalando o reinício dos jogos. No comando absoluto da roda, cantou:
Foi só um vento que bateu na porta,
Onda vai, onda vem
Chuva miudinha não mata ninguém,
Vamos simbora, camará!
Ai, ai, Aidê, joga bonito que eu quero ver…

Livro: Água de beber camará!
Um Bate-papo de Capoeira
Autor: Bira “Acordeon” Almeida
Edição 1999 – pag.59
* Capoeiranews: Um livro para estudo.

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