Quase
no final de um daquele dia, um jovem desconhecido entrou desafiante
no terreiro repleto. Com arrogância, a musculosa estatura
do Xavante cor de cobre olhou a todos de cima de sua altura.
Imediatamente tornou-se evidente que ele não estava só. Dependurado
num colar de contas coloridas, ele carregava junto ao coração um
saquinho recheado de coisas mágicas, mandinga forte preparada pela
sua mãe-de-santo. Uma aura poderosa envolvia sua imagem de guerreiro
acostumado ao combate, um vencedor. Realmente não estava só.
Mestre
Bimba parou o jogo e lhe indagou mudo com um olhar cortante:
-Quem é
você para interromper a minha festa?
O
estranho não lhe respondeu de pronto. Foi entrando até parar no
meio da roda. “Vim do Recôncavo prá jogar com você, seu Manuel!”
O
espanto amordaçou o pessoal e um silêncio de chumbo fundiu-se no
ar. Ninguém jamais se dirigira ao Mestre
daquela maneira. Em poucos segundos, acordando do estupor causado
pela surpresa, vários alunos pularam à frente em defesa do velho
mestre. Bimba acalmou a todos e convidou o visitante a se agachar no
pé do berimbau, como manda o catecismo das
tradições e o ritual de se iniciar
o jogo.
Então,
puxou a ladainha com voz forte e emoção.
Ieeeeeeh!
Ieh tava
em casa!
Ieh tava
em casa,
Sem pensá
nem maginá!
Quando
ouvi batê na porta,
Levantei
prá espiá.
Era uma
cabra muito ousado
Me
chamando prá jogá.
Hoje o
dia é de festa, veja só…
Veio aqui
para brigá.
Num tem
nada, meu colega,
Tá na
hora, vamos lá,
Um mundo
dá muitas voltas
Essa
volta vamos dá, camaradinho…
Eh, viva
meu Deus…
Viva a
capoeira
É
regioná…
Gigante
mandou um São Bento Grande bem marcado no seu gunga de lei, e o coro
rolou:
-Qué dá
no meu mestre, no mestre você não dá!
Uma
comichão nervosa instigou a alma dos presentes, excitação no ar.
No pé do berimbau estavam prontos. Era hora de lutar. De um lado, o
jovem atlético tinindo para desfechar ataques mortais. Do outro, o
velho mestre com as juntas enrijecidas pela idade e as pernas
varicosas geralmente pesadas e lentas. Porém, havia algo de especial
nos seus olhos, na sua postura. Uma tranquilidade alerta.
Eles se
cumprimentaram, tocaram o chão em frente e invocaram as bençãos
dos orixás. O clima amistoso de minutos atrás cedera lugar a uma
nuvem carregada que antecipava tempestade. A Brincadeira de Angola
estava a ponto de se tornar numa luta verdadeira no ritmo forte de
São Bento Grande de Regional. Somente aqueles que já experimentaram
um jogo na maldade verdadeira podem imaginar o arrepio de fogo que
escorre espinhaço abaixo preparando o corpo na expectância do
combate prá valer.
Naquele
momento o desafiante preparou um “au” elástico e ligeiro em
direção
ao centro da roda. O velho Mestre
pôs as mãos no chão
e
deu um salto mal feito e feio, um “au” todo encurungunjado como
ele costumava dizer. Rápido que nem um corisco, Bimba terminou o
movimento antes do outro capoeirista completar o seu, esquecendo o pé
flutuando no espaço como enorme marreta pronta para esbagaçar o
mundo.
Carregado
pelo impulso do seu próprio movimento, o jovem desafiante colidiu
contra a bigorna à prumo que fora coloca displicentemente num local
escolhido com precisão. O impacto foi tremendo
e o homem se projetou no meio dos expectadores surpresos, desistindo
do jogo antes mesmo dele começar. Dolorido, a boca sangrando a
cuspir pedaços de dentes, exclamou esputefato: “Que é isso,
mestre...que é isso?”
O velho
mestre sem lhe dar muita atenção respondeu em cima da bucha:
- Isso é
pé, meu filho!
Continuando
a partir de onde havia parado antes, Bimba deu um “iê,”
assinalando
o reinício dos jogos. No comando absoluto da roda, cantou:
Foi
só
um
vento que bateu na porta,
Onda vai,
onda vem
Chuva
miudinha não mata ninguém,
Vamos
simbora, camará!
Ai, ai,
Aidê, joga bonito que eu quero ver…
Livro:
Água de beber camará!
Um
Bate-papo de Capoeira
Autor:
Bira “Acordeon” Almeida
Edição
1999 – pag.59
*
Capoeiranews: Um livro para estudo.
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