sexta-feira, 24 de março de 2017

CAPOEIRA MAIS OU MENOS SANTA





Há pouco mais de um século, era comum às quadrilhas de capoeiras que infestavam o Rio organizarem os temidos fechas nas procissões religiosas. Nessas ocasiões, servindo-se do pânico que produziam, uns poucos homens dominavam a multidão, roubando-a e ferindo-a.
Na procissão do enterro de 1841, cerca de oito desordeiros passaram a acompanhar o andor de Nossa Senhora, imitando os cânticos religiosos e atirando ofensa aos presentes – o que era uma espécie de senha para desencadear o fecha.
Um frade do Carmo separou-se dos seus companheiros e aproximou-se dos capoeiras, falando-lhes em voz baixa. Aos olhos dos atemorizados devotos, o que se seguiu foi absolutamente espantoso: o frade transfigurou-se em verdadeiro demônio de agilidade, saltando, gingando, distribuindo rabos-de-arraia e tesouras em golpes certeiros, só parando quando cinco dos desocupados jaziam por terra e os demais haviam fugidos.
A procissão do enterro prosseguiu debaixo da maior devoção.


AS INSTITUIÇÕES

O tipo pitoresco encontrado com frequência nos grandes centros, teve sua presença marcada de modo acentuado no Rio antigo, graças a pequenez da cidade, que tudo via e comentava, e aos colecionadores de flagrantes do passado. A capoeiragem trazida de Angola pelo escravo banto, desenvolveu-se nos quilombos como uma espécie de querrilha e ganhou popularidade imensa após a chegada da Côrte Portuguêsa ao Brasil, quando a rivalidade entre os nativos e reinós se acentuou. Apesar da carta de 1821, que prescrevia castigos corporais aos que “se entregassem aos jogos de corpo e rasteiras”, o capoeira tornou-se um ídolo popular, imitado por todos ricos e pobres, pretos e brancos, adultos e crianças.
As quadrilhas de capoeiras levavam nomes pitorescos e hostilizavam-se mutuamente, fomando duplas de tradicionais inimigos, que acertavam contas nas festas populares, quando havia desfile. A Flor de Gente, da Paróquia da Glória, era inimiga da Monturo, de Santa Luzia. A Três Cachos, vivia em guerra com a Espada, do Largo da Lapa, enquanto a Cadeira da Senhora, de Santana, lutava contra todas, principalmente contra a Guaiamum, da cidade nova e a Flor de Uva das mais antigas.

OS PRINCÍPIOS

A capoeiragem tinha um código de honra, obedecido por todas as quadrilhas. Quanto mais fortes eram, tanto mais cavalheiresco seu comportamento. Vingar a honra ultrajada de uma mulher ou salvar uma criança, foram o pretexto para muita escaramuça e mesmo batalha aberta, nas ruas do Rio antigo.
As principais regras daquele código eram as seguintes:
1 – não usar nunca arma de fogo, só se permitindo a navalha eu cacete.
2 – não trabalhar na segunda-feira, sacrificando qualquer negócio pelo respeito à esse princípio;
3 – vestir- de maneira característica: calça larga, palitó sempre aberto, botina de bico bem fino, lenço ao pescoço;
4 – portar-se a caráter, isto é, andar gingando, apoiar-se numa perna flexionando a outra, palito no canto da boca, não falar de perto com ninguém (a não ser com uma mulher bonita) e
5 – usar o chapéu como arma de defesa, dobrando-o e mantendo-o na mão esquerda.

A terminologia era também típica, na designação de objetos e situações. As expressões própria dos lances de capoeiragem eram rabo – de - arraia, varredura, passo – a - dois, fedegoso, escorão e etc.

OS PERSONAGENS

Durante algum tempo foi moda conhecer capoeiragem nas classes mais favorecidas. Era comum a presença de intelectuais e elegantes nas escolas fundadas no Flamengo e em Santa Luzia. Mais recentemente Coelho Neto, gentil e franzino, foi um exemplo exímio de capoeira. O caso do frade da procissão do enterro não era isolado, nos meios religiosos onde padres, lidando com toda espécie de gente, queriam fazer-se respeitados por outras virtudes que não as espirituais.
Alguns nomes ficaram marcados na memória popular, pelas proezas que praticavam e pelo temor que inspiravam, até nas autoridades. Chico - Carne - Sêca, Quebra - Côco, Natividade, Pedro de Hortência, Bem - Te - Vi e outros destacaram-se dos demais. Dois outros, Capitão Nabuco e Manduca da Praia eram além de habeis capoeiristas, atletas consumados, que assombravam pela força física. Capitão Nabuco era figura acabada do vilão: gigantesco, branco, filho de pais ilustres, que o repudiaram pela sua vida de crime, matava, feria e desacatava por dinheiro. Era especialista em vingar questões de honra e gostava de fazer seus desacatos nos lugares mais movimentados, como a porta das grandes confeitaria e dos teatros.

Manduca da Praia era um mulato elegante, de longa e bem tratada barba, que respondeu a cerca de trinta processos por morte e ferimentos, sendo sempre absolvido por falta de testemunhas - que se atemorizavam no último momento – e por ser bem protegidos por alguns políticos. Diz-se que uma vez por questão de ciúmes, acabou com a festa da Penha, deixando o local silencioso e despovoado. Morreu de velho aos setenta anos.
Jornal do Brasil – Luiz Carlos Lisboa – Rio de Janeiro, 18 de abril de 1965”.

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