Há
pouco mais de um século, era comum às quadrilhas de capoeiras que
infestavam o Rio organizarem os temidos fechas nas procissões
religiosas. Nessas ocasiões, servindo-se do pânico que produziam,
uns poucos homens dominavam a multidão, roubando-a e ferindo-a.
Na
procissão do enterro de 1841, cerca de oito desordeiros passaram a
acompanhar o andor de Nossa Senhora, imitando os cânticos religiosos
e atirando ofensa aos presentes – o que era uma espécie de senha
para desencadear o fecha.
Um
frade do Carmo separou-se dos seus companheiros e aproximou-se dos
capoeiras, falando-lhes em voz baixa. Aos olhos dos atemorizados
devotos, o que se seguiu foi absolutamente espantoso: o frade
transfigurou-se em verdadeiro demônio de agilidade, saltando,
gingando, distribuindo rabos-de-arraia e tesouras em golpes
certeiros, só parando quando cinco dos desocupados jaziam por terra
e os demais haviam fugidos.
A
procissão do enterro prosseguiu debaixo da maior devoção.
AS
INSTITUIÇÕES
O
tipo pitoresco encontrado com frequência nos grandes centros, teve
sua presença marcada de modo acentuado no Rio antigo, graças a
pequenez da cidade, que tudo via e comentava, e aos colecionadores de
flagrantes do passado. A capoeiragem trazida de Angola pelo escravo
banto, desenvolveu-se nos quilombos como uma espécie de querrilha e
ganhou popularidade imensa após a chegada da Côrte Portuguêsa ao
Brasil, quando a rivalidade entre os nativos e reinós se acentuou.
Apesar da carta de 1821, que prescrevia castigos corporais aos que
“se entregassem aos jogos de corpo e rasteiras”, o capoeira
tornou-se um ídolo popular, imitado por todos ricos e pobres, pretos
e brancos, adultos e crianças.
As
quadrilhas de capoeiras levavam nomes pitorescos e hostilizavam-se
mutuamente, fomando duplas de tradicionais inimigos, que acertavam
contas nas festas populares, quando havia desfile. A Flor de Gente,
da Paróquia da Glória, era inimiga da Monturo, de Santa Luzia. A
Três Cachos, vivia em guerra com a Espada, do Largo da Lapa,
enquanto a Cadeira da Senhora, de Santana, lutava contra todas,
principalmente contra a Guaiamum, da cidade nova e a Flor de Uva das
mais antigas.
OS
PRINCIPIOS
A
capoeiragem tinha um código de honra, obedecido por todas as
quadrilhas. Quanto mais fortes eram, tanto mais cavalheiresco seu
comportamento. Vingar a honra ultrajada de uma mulher ou salvar uma
criança, foram o pretexto para muita escaramuça e mesmo batalha
aberta, nas ruas do Rio antigo.
As
principais regras daquele código eram as seguintes:
1
– não usar nunca arma de fogo, só se permitindo a navalha eu
cacete.
2
– não trabalhar na segunda-feira, sacrificando qualquer negócio
pelo respeito à esse pricípio;
3
– vestir- de maneira caracteristica: calça larga, palitó sempre
aberto, botina de bico bem fino, lenço ao pescoço;
4
– portar-se a caráter, isto é, andar gingando, apoiar-se numa
perna flexionando a outra, palito no canto da boca, não falar de
perto com ninguém (a não ser com uma mulher bonita) e
5
– usar o chapéu como arma de defesa, dobrando-o e mantendo-o na
mão esquerda.
A
terminologia era também típica, na designação de objetos e
situações. As expressões própria dos lances de capoeiragem eram
rabo – de - arraia, varredura, passo – a - dois, fedegoso,
escorão e etc.
OS
PERSONAGENS
Durante
algum tempo foi moda conhecer capoeiragem nas classes mais
favorecidas. Era comum a presença de intelectuais e elegantes nas
escolas fundadas no Flamengo e em Santa Luzia. Mais recentemente
Coelho Neto, gentil e franzino, foi um exemplo exímio de capoeira. O
caso do frade da procissão do enterro não era isolado, nos meios
religiosos onde padres, lidando com toda espécie de gente, queriam
fazer-se respeitados por outras virtudes que não as espirituais.
Alguns
nomes ficaram marcados na memória popular, pelas proezas que
praticavam e pelo temor que inspiravam, até nas autoridades. Chico -
Carne - Sêca, Quebra - Côco, Natividade, Pedro de Hortência, Bem -
Te - Vi e outros destacaram-se dos demais. Dois outros, Capitão
Nabuco e Manduca da Praia eram além de habeis capoeiristas, atletas
consumados, que assombravam pela força física. Capitão Nabuco era
figura acabada do vilão: gigantesco, branco, filho de pais ilustres,
que o repudiaram pela sua vida de crime, matava, feria e desacatava
por dinheiro. Era especialista em vingar questões de honra e gostava
de fazer seus desacatos nos lugares mais movimentados, como a porta
das grandes confeitaria e dos teatros.
Manduca
da Praia era um mulato elegante, de longa e bem tratada barba, que
respondeu a cerca de trinta processos por morte e ferimentos, sendo
sempre absolvido por falta de testemunhas - que se atemorizavam no
último momento – e por ser bem protegidos por alguns políticos.
Diz-se que uma vez por questão de ciúmes, acabou com a festa da
Penha, deixando o local silencioso e despovoado. Morreu de velho aos
setenta anos.
“Jornal
do Brasil – Luiz Carlos Lisboa – Rio de Janeiro, 18 de abril de
1965”.
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