É dançando que a gente se entende
A
origem da capoeira está em volta de lendas, que possuem grande
fundamento filosófico-histórico. Conta-se
que nas tribos
angolanas, anualmente era realizado uma festa da fertilidade, na qual
as jovens que estavam saindo da infância para a puberdade eram
oferecidas aos jovens mais fortes e capazes, garantindo a perpetuação
da espécie. A seleção destes jovens era feita através de uma luta
que era também um tributo a natureza pródiga e com a qual viviam em
perfeita harmonia.
Deste
modo, os princípios básicos
da luta foram copiados ou inspirados em seu ambiente natural. Da
água, a fonte da vida, veio o principal conceito: o movimento
constante, a renovação perene, o preenchimento
de todos os espaços. Dos animais vieram os outros: a agilidade dos
felinos, a malícia dos
répteis, a precisão das aves de rapina, a força dos equinos. A
tudo isso foram somados os conceitos cosmogênicos africanos, criando
uma luta cerimonial que foi a precursora da capoeira a ser
desenvolvida no Brasil.
Dentre
os escravos que foram trazidos para cá, havia muitos que já eram
exímios lutadores. Na
senzala estes primitivos mestres começaram a instruir aqueles que
não a conheciam, dando-lhes alguma esperança de luta contra a
injustiça. Na ânsia da liberdade o negro fugia para floresta. Em
seu encalço saia o Capitão-do-Mato. Ao chegar naqueles pontos onde
o mato era baixo e ralo - a capoeira - o negro preparava-se para
lutar por sua liberdade e normalmente vencia.
O medo do ”Negro da Capoeira” começou a espalhar-se pelas
fazendas e logo o treinamento daquela luta era punido com chibatadas
no tronco ou até amputação de um pé nos reincidentes. Foi nesse
momento que começou a surgir a capoeira tal com conhecemos hoje.
Assim como o Candomblé promoveu o sincretismo de seus orixás com os
santos da igreja para disfarçar seu culto proibido pelo português
católico, também a luta foi incorporada à inocente diversão da
dança para enganar os temerosos feitores.
Quando
da libertação da escravatura, o negro foi repentinamente abandonado
à sua própria sorte e consequentemente
muitos caíram na marginalidade usando
a luta que até então era de liberdade, para garantir sua
sobrevivência, ainda que de modo desonesto. Criaram-se maltas de
capoeiras que vendiam proteção a políticos e senhores de terra, e
até praticavam alguns
roubos e arruaças.
Só mais tarde as qualidades esportivas da capoeira começaram a ser
reconhecidas pelos jovens de famílias honestas e até ricas,
principiando sua redenção. Podemos citar como exímios capoeiristas
do passado figuras nacionais como o Visconde do Rio Branco e Olavo
Bilac. Entretanto, se a reabilitação da capoeira como esporte foi
afinal conseguida, seu aspecto místico-filosófico ainda é
desconhecido até mesmo por boa parte de seus atuais mestres.
Com
o objetivo de desenvolver
a
capoeira como esporte e como filosofia, harmonizando
e desenvolvendo os conceitos primitivos africanos com os
conhecimentos do homem atual é que está sendo fundada agora no Rio
de Janeiro a Associação
de Capoeira Guaiamúns Nagôas, cujo nome deriva das duas grandes
maltas que existiam no Rio Antigo, a dos Guaiamúns e a dos Nagôas,
rivais entre si e agora juntas a simbolizar a união de forças
antagônicas na construção de algo melhor.
Talvez
dentre em breve muito
mais
pessoas possam começar a ver também a beleza e a universalidade
desta arte que foi assim definida por Mestre Pastinha, fundador da
primeira academia de capoeira legalmente reconhecida: “mandinga
de escravo em ânsia de liberdade; seu princípio não teve método,
seu fim é inconcebível ao mais sábio dos mestres.”
E deixamos aqui uma pergunta: estava ele, Mestre Pastinha, apenas
definindo a capoeira ou estava também resumindo toda história da
evolução humana desde a escravidão da ignorância até a suprema
libertação pelo conhecimento?
Artur Arpad Szabo – diretor da Associação de Capoeira
Guaiamúns-Nagôas, Rio de Janeiro – RJ
Revista Planeta, nº120, setembro de 1982
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