sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A SENDA ESOTÉRICA DA CAPOEIRA (final)


 É dançando que a gente se entende

A origem da capoeira está em volta de lendas, que possuem grande fundamento filosófico-histórico. Conta-se que nas tribos angolanas, anualmente era realizado uma festa da fertilidade, na qual as jovens que estavam saindo da infância para a puberdade eram oferecidas aos jovens mais fortes e capazes, garantindo a perpetuação da espécie. A seleção destes jovens era feita através de uma luta que era também um tributo a natureza pródiga e com a qual viviam em perfeita harmonia.
Deste modo, os princípios básicos da luta foram copiados ou inspirados em seu ambiente natural. Da água, a fonte da vida, veio o principal conceito: o movimento constante, a renovação perene, o preenchimento de todos os espaços. Dos animais vieram os outros: a agilidade dos felinos, a malícia dos répteis, a precisão das aves de rapina, a força dos equinos. A tudo isso foram somados os conceitos cosmogênicos africanos, criando uma luta cerimonial que foi a precursora da capoeira a ser desenvolvida no Brasil.
Dentre os escravos que foram trazidos para cá, havia muitos que já eram exímios lutadores. Na senzala estes primitivos mestres começaram a instruir aqueles que não a conheciam, dando-lhes alguma esperança de luta contra a injustiça. Na ânsia da liberdade o negro fugia para floresta. Em seu encalço saia o Capitão-do-Mato. Ao chegar naqueles pontos onde o mato era baixo e ralo - a capoeira - o negro preparava-se para lutar por sua liberdade e normalmente vencia.
O medo do ”Negro da Capoeira” começou a espalhar-se pelas fazendas e logo o treinamento daquela luta era punido com chibatadas no tronco ou até amputação de um pé nos reincidentes. Foi nesse momento que começou a surgir a capoeira tal com conhecemos hoje. Assim como o Candomblé promoveu o sincretismo de seus orixás com os santos da igreja para disfarçar seu culto proibido pelo português católico, também a luta foi incorporada à inocente diversão da dança para enganar os temerosos feitores.
Quando da libertação da escravatura, o negro foi repentinamente abandonado à sua própria sorte e consequentemente muitos caíram na marginalidade usando a luta que até então era de liberdade, para garantir sua sobrevivência, ainda que de modo desonesto. Criaram-se maltas de capoeiras que vendiam proteção a políticos e senhores de terra, e até praticavam alguns roubos e arruaças.
Só mais tarde as qualidades esportivas da capoeira começaram a ser reconhecidas pelos jovens de famílias honestas e até ricas, principiando sua redenção. Podemos citar como exímios capoeiristas do passado figuras nacionais como o Visconde do Rio Branco e Olavo Bilac. Entretanto, se a reabilitação da capoeira como esporte foi afinal conseguida, seu aspecto místico-filosófico ainda é desconhecido até mesmo por boa parte de seus atuais mestres.
Com o objetivo de desenvolver a capoeira como esporte e como filosofia, harmonizando e desenvolvendo os conceitos primitivos africanos com os conhecimentos do homem atual é que está sendo fundada agora no Rio de Janeiro a Associação de Capoeira Guaiamúns Nagôas, cujo nome deriva das duas grandes maltas que existiam no Rio Antigo, a dos Guaiamúns e a dos Nagôas, rivais entre si e agora juntas a simbolizar a união de forças antagônicas na construção de algo melhor.
Talvez dentre em breve muito mais pessoas possam começar a ver também a beleza e a universalidade desta arte que foi assim definida por Mestre Pastinha, fundador da primeira academia de capoeira legalmente reconhecida: “mandinga de escravo em ânsia de liberdade; seu princípio não teve método, seu fim é inconcebível ao mais sábio dos mestres.”
E deixamos aqui uma pergunta: estava ele, Mestre Pastinha, apenas definindo a capoeira ou estava também resumindo toda história da evolução humana desde a escravidão da ignorância até a suprema libertação pelo conhecimento?

Artur Arpad Szabo – diretor da Associação de Capoeira Guaiamúns-Nagôas, Rio de Janeiro – RJ

Revista Planeta, nº120, setembro de 1982

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