segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A SENDA ESOTÉRICA DA CAPOEIRA (parte I)


 A SENDA ESOTÉRICA DA CAPOEIRA

“Dois homens vestidos de branco estão agachados frente a frente, concentrados no ritmo cadenciado que o mestre tira do seu berimbau. Ao redor do círculo marcado no chão – a roda – os demais, também de branco, batem palmas e acompanham em coro o refrão cantado pelo Mestre. A um sinal deste, os dois homens se benzem e iniciam seus movimentos circulares, desferindo golpes cujo a violência fica encoberta pela beleza daquilo que à primeira vista é apenas uma dança.
Na realidade a capoeira é mais que uma luta ou uma dança, um esporte ou uma manifestação folclórica. É uma herança místico-cultural de inestimável valor que nos foi legada pelo negro que veio ao Brasil como escravo, e aqui usou-a para lutar por sua liberdade. Porém como quase todas manifestações culturais e religiosas do negro, também a capoeira sofreu, ao longo dos séculos, uma perseguição sistemática por parte do branco zeloso de sua “cultura” européia.
Por esta razão chegou até nós uma imagem deturpada, na qual é evidenciado o fato de ter sido praticada principalmente por marginais (criados pela própria sociedade que libertou o negro sem no entanto dar-lhes oportunidades dignas de sobrevivência). Mas o seu maior prejuízo foi a perda do caráter místico-filosófico, que só agora estamos tentando redescobrir e transmitir.
Para se compreender o sentido místico-filosófico da capoeira, talvez seja interessante compará-la com as artes marciais orientais, que desde tempos imemoriais são usadas para auxiliar o homem a transcender seus limites físico-mentais a níveis quase utópicos da nossa compreensão (vide planeta nº 94).
Para que o jogo da capoeira se desenvolva, dois elementos são indispensáveis: o ritmo vibrante e cadenciado do berimbau e a roda – espécie de arena onde o jogo se desenvolve. Na realidade, o jogo da capoeira é a representação da eterna luta pela harmonia do universo, a eterna luta das energias positivas e negativas das quais todas as coisas e seres são feitos. Na capoeira o jogo desenvolve-se dentro da roda traçada no chão, e é interessante lembrar que em todas culturas arcaicas, o círculo foi símbolo do universo, por não ter início nem fim. Os golpes desferidos são sempre circulares e em sequência ininterrupta, simbolizando o eterno movimento de suas forças integrantes e antagônicas.
Ao contrário das artes orientais, aqui não se bloqueia ou impede-se a finalização do golpe adversário. O contragolpe só é desferido quando o adversário terminou, naquela fração ínfima de tempo em que este está desequilibrado. Como todos os movimentos são circulares, na realidade o contragolpe vem “preencher o vácuo” deixado pelo golpe, do mesmo modo que as energias do universo não se destroem, apenas combinam-se sem que haja perdas de carga; há apenas perda do espaço ocupado por uma em detrimento da outra, num movimento constante e harmônico.
Mas o principal elemento de transcendência mental é o berimbau – o primeiro e mais importantes dos mestres. É o seu ritmo que harmoniza o corpo, é a sua vibração que eleva a mente do capoeirista. Pode-se afirmar que o ritmo do berimbau, auxiliado por pandeiro, atabaque, palmas e canto constitui-se verdadeiro mantra, que à semelhança deste eleva os capoeiristas a níveis mais elevados de consciência permitindo que seu corpo e sua mente realizem verdadeiros prodígios em termos de reflexos, velocidade, equilíbrio e flexibilidade.


Artur Arpad Szabo – diretor da Associação de Capoeira Guaiamúns-Nagôas, Rio de Janeiro – RJ

Revista Planeta, nº120, setembro de 1982

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