segunda-feira, 12 de outubro de 2015

"QUERIDO DE DEUS" UM CAPOEIRA NAVEGADOR!



Turma do Mestre Samuel Querido de Deus, 1937

"QUERIDO DE DEUS"
UM CAPOEIRA NAVEGADOR!

Crônica por Mestre Tonho Matéria sobre o Mestre Querido de Deus, Capoeira da Bahia imortalizado nas rodas de capoeira e nas obras de Jorge Amado
Por Mestre Tonho Matéria

Maio de 2005
Por diversas vezes Garrincha subia a ladeira da boca da mata só para ficar observando seu mestre falar sobre certos capoeiristas que desnortearam a cidade de São Salvador, entre os séculos XIX e XX. Quando chegava à hora da roda, ligeiramente, gravava o nome de muitos deles que na verdade era através das letras cantadas que ele mantinha uma familiaridade. A música da capoeira ajuda muito os novos praticantes a conhecerem ou saberem dos mitos que ficaram sobre forma de um ostracismo escondidos no fundo da cabaça ou dentro do toque do atabaque. Porém, não deixavam de existir dentro do corpo das músicas executadas nas rodas e nos CDs dos grupos, que hoje, são vários espalhados pelo mundo.
Quando ele percebeu que era de uma mera importância para a sua vida como homem e cidadão de uma arte que a cada dia vinha lhe dando conceito no mundo, começou a fazer pesquisas sobre esses baluartes e descobriu coisas fantásticas. Certo dia, lendo um artigo que fora publicado no Jornal Correio da Bahia (Quarta-Feira, 18 de Abril de 2001, numa leitura bastante direta em que dizia o seguinte: Velhos mestres, velhas histórias. A importância do mestre na capoeira ainda hoje é uma das principais características da arte-luta brasileira. Apesar das inúmeras mudanças pelas quais a manifestação vem passando nas últimas décadas, muito do que se sabe dos grandes mestres da capoeira da Bahia sobrevive disperso na memória popular, nos ditos e ladainhas cantados em inúmeras rodas espalhadas pelo mundo.
Como principal particularidade, a dificuldade em observar os limites entre lenda e verdade, entre folclore e fato. Fatores que apenas legitimam a grandeza e a força da arte fundamentalmente enraizada na cultura brasileira. Para muitos teóricos da capoeiragem, a maleabilidade entre invenção, mito e realidade presente no universo da capoeira é reflexo do mais puro jogo capoeirístico. Verdade/mentira,real/irreal, vencedor/vencido pertencem a uma lógica por demais cartesiana, contrária à da capoeira que prima não pelas verdades essenciais, mas pelo aqui e o agora do jogo. A lista de grandes personagens é imensa, nela se encontrando nomes que traduzem um forte acento poético: Samuel Querido de Deus, Algemiro Olho de Pombo, Feliciano Bigode de Seda, Pedro Porreta, Inimigo sem Tripa, Sete Mortes, Chico Três Pedaços, Pedro Mineiro e muitos outros. À sombra dos populares mestres Pastinha e Bimba, gerações inteiras de capoeiristas "vadiaram" em homenagem à África perdida, nos becos e vielas da velha Salvador. Entre os mais cantados está, com certeza, Besouro Mangangá, que tinha a peculiar qualidade de escapar "voando" das emboscadas inimigas.
Isso lhe rendeu uma infinita educação cultural que jamais saberia se um dia iria desenvolver se não fossem os meios de comunicação que se integram a falar dessa arte e os livros dos estudiosos. Foi ai que percebeu o quanto a capoeira e seus jogadores são ricos e cheios de causos que ficaram escondidos na curva da memória do seu próprio povo. Os grandes capoeiristas daquela época tinham em si uma legitimidade que desencadeava as suas próprias vidas. Embora saibamos que herdamos de recordações, o fito da memória histórica dos seus movimentos acrobáticos e que servem para alimentar os olhos dos turistas e o bolso dos capitalistas e exploradores.
Com tudo isso, Garrincha continuava errante. Navegava no relato e se vislumbrava com os nomes dos capoeiristas, que lembram mais nomes fictícios de filmes de comedia. Saiu pra luta do corpo a corpo com a busca do desafio e se deparou com o primeiro personagem chamado Samuel Querido de Deus, um pescador que saia mar adentro jogando sua rede pra tentar pescar o sustento da família, e que ficava dias e dias sobre as águas do misterioso e profundo mar de todos os encantos. Viu que era de grande importância o assunto e que com certeza iria aprender mais uma lição.
Então, lendo o livro de Jorge Amado, Bahia de Todos os Santos, (páginas: 261 - 262 42ª ed.) percebeu que o escritor traçou o seu perfil em que dizia o seguinte: "Já começaram os fios de cabelo branco na carapinha de Samuel Querido de Deus. Sua cor é indefinida. Mulato, com certeza. Mas mulato claro ou mulato escuro, bronzeado pelo sangue indígena ou com traços de italiano no rosto anguloso? Quem sabe? Os ventos do mar nas pescarias deram ao rosto do Querido de Deus essa cor que não é igual a nenhuma cor conhecida, nova para todos os pintores. Ele parte com seu barco para os mares do sul do estado onde é farto o peixe. Quantos anos terá? É impossível saber nesse cais da Bahia, pois de há muitos anos que o saveiro de Samuel atravessa o quebra-mar para voltar, dias depois, com peixe para a banca do mercado Modelo. Mas o velhos canoeiros poderão informar que mais de sessenta invernos já se passaram desde que Samuel nasceu. Pois sua cabeça já não tem fios brancos na carapinha que parece eternamente molhada de água do mar? Mais de sessenta anos. Com certeza. Porém ainda assim, não há melhor jogador de capoeira, pelas festas de Nossa Senhora da Conceição da Praia, na primeira semana de dezembro, que o Querido de Deus. Que venha Juvenal, jovem de vinte anos, que venha o mais ágil, o mais técnico, que venha qualquer um, e Samuel, o Querido de Deus, mostra que ainda é o rei da capoeira da Bahia de Todos os Santos. Os demais são seus discípulos e ainda olham espantados quando ele se atira no rabo-de-arraia, porque elegância assim nunca se viu... E já sua carapinha tem cabelos brancos...Existem muitas histórias a respeito de Samuel Querido de Deus. Muitas histórias que são contadas no Mercado e no cais. Americanos do norte já vieram para vê-lo lutar. E pagaram muito caro por uma exibição do velho lutador. Uma loira de Chicago se apaixonou por ele, quis levá-lo embora.

Certa vez seu amigo escritor foi procurá-lo. Dois cinematografistas queriam filmar uma luta de capoeira. Samuel chegara da pescaria, dez dias no mar e trazia ainda nos olhos um resto de vento sul. Prontificou-se. Fomos em busca de Juvenal. E, com as máquinas de som e de filmagem, dirigimo-nos todos para a Feira de Água dos Meninos. A luta começou e foi soberba. Os cinematografistas rodavam suas máquinas. Quando tudo terminou, Juvenal estendido na areia, Samuel sorrindo, o mais velho dos operadores perguntou quanto era. Samuel disse uma soma absurda na sua língua atrapalhada. Fora quanto os americanos haviam pago para vê-lo lutar. O escritor explicou então que aqueles eram cinematografistas brasileiros, gente pobre. Samuel Querido de Deus abriu os dentes num sorriso compreensivo. Disse que não era nada e convidou todo mundo para comer sarapatel no botequim em frente. 'Podeis vê-lo de quando em quando no cais. De volta de uma pescaria com seu saveiro. Mas com certeza o vereis na festa da Conceição da Praia, derrotando os capoeiras, pois ele é o maior de todos. Seu nome é Samuel Querido de Deus. Viveu em Salvador, numa fase em que havia cessado a repressão ao jogo da Capoeira e sua prática já não era mais proibida. No ano de 1944, quando o pescador ainda vivia, sob o título O Capoeira.
Segundo o livro de Camile Adorno, "Os principais estudiosos da cultura brasileira, no passado recente, imortalizaram o jogo da Capoeira em páginas magistrais". É este o caso de Eunice Catunda, que concorreu com suas observações para fixar análise do jogo e das suas tradições, em artigo intitulado Capoeira no Terreiro de Mestre Waldemar, publicado em Fundamentos - Revista de Cultura Moderna, no ano de 1952, em São Paulo.
"Todo artista que não acredita no fato de que só o povo é o eterno criador, que só dele nos pode vir a força e a verdadeira possibilidade de expressão artística, deveria assistir a uma capoeira baiana. Ali a força criadora se evidencia, vigorosa, livre dos preconceitos mesquinhos do academismo, tendo como lei primordial e soberana a própria vida que se expressa em gestos, em música, em poesia. Ali se exprime a vida magnífica e bela, em nada prejudicada pela capacidade limitada dos instrumentos musicais primitivos, aos quais se adapta sem ser por eles diminuída".
Com certeza, Garrincha aprendeu mais um capítulo da vida de um capoeira e notou que não basta só joga-la com as pernas, o mais importante é saber desenvolver a técnica do conhecimento, aprimorando e enriquecendo o seu conteúdo.

"QUEM NÃO CONHECE SUA PROPRIA HISTÓRIA ESTA FADADO A REPITI-LA"
BY CONTRA MESTRE JIMMY ROGER - CCEB - SANTOS - SP

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